viernes, 14 de marzo de 2008

Pessoas bem intencionadas que tentam fazer sua parte na conservação do planeta

Érica Montenegro
Da equipe do Correio
Brasil

Estamos engolindo
o cerrado

As cidades, as fazendas e os condomínios irregulares já comeram 362 mil hectares do cerrado brasiliense, de acordo com as mais recentes informações do relatório Probio (veja mapa nesta página). Apenas 37% da paisagem original de arbustos e árvores tortas continua intocada no Distrito Federal.
Estas reservas de vida selvagem estão restritas às unidades de conservação e aos morros, onde o relevo acidentado dificulta a ocupação de pessoas e a introdução de culturas agrícolas.
"Estamos no limite de ocupação do território", reconhece Edson Sano, pesquisador da Embrapa Cerrados. Ele foi um dos responsáveis pelo relatório Probio, que usou imagens de satélite para avaliar os estragos causados na savana brasileira.
"Na hipótese de aumento populacional, o DF teria de transformar áreas agrícolas em cidades", avalia o pesquisador. Na prática, isso já vem acontecendo, com os parcelamentos nas áreas rurais. Projetado para ter 500 mil habitantes, a capital do país tem 2,4 milhões de moradores, segundo a última contagem populacional feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Desde a inauguração, devastamos o equivalente a oito cidades do tamanho do Plano Piloto - o único núcleo urbano que estava pensado por Lucio Costa no projeto original. Quando comparado aos outros estados brasileiros em que o cerrado também está presente, o DF é, proporcionalmente, o quarto maior destruidor do ecossistema (veja quadro).
Está atrás apenas de São Paulo, Paraná e Mato Grosso do Sul. "A velocidade da destruição preocupa, o DF ainda não completou cinco décadas", alerta o professor da Universidade de Brasília (UnB), Donald Sawyer. Edson Sano é um desenvolvimentista. Significa que, para ele, os recursos naturais devem ser aproveitados economicamente e de maneira racional.
"Não precisamos desmatar nenhum hectare de cerrado a mais. Basta aplicarmos as tecnologias existentes para aumentar a produtividade", defende o pesquisador. Donald Sawyer aposta no desenvolvimento com conservação.
Na opinião dele, a vegetação precisa ser mantida para assegurar os serviços ambientais. "Não é por estética que as árvores devem estar de pé. É por sobrevivência, pela nossa sobrevivência", defende.
Serviços ambientais são favores que a natureza nos presta. A regulação da temperatura, o regime de chuvas, a absorção e a filtragem da água são exemplos de serviços ambientais. "Já temos fortes evidências de que o uso que estamos fazendo do planeta está desregulando as funções ecossistêmicas", explica Sawyer.
As árvores do cerrado arrancadas servem de exemplo para entender às mudanças provocadas pelo homem no meio ambiente. Quando substituímos árvores por cimento e asfalto, impermeabilizamos o solo. Com a impermeabilização, a água da chuva não infiltra e, conseqüentemente, não recarrega os lençóis freáticos. Ela escorre pela superfície, provocando as erosões e o assoreamento.
O resultado disso podem ser futuros problemas no abastecimento de água ou no fornecimento de energia elétrica. Ao desmatar para construir ou para plantar, o homem também influencia no ciclo do carbono, já que as raízes das espécies do cerrado são as principais fixadoras de dióxido de carbono da região. "Se a planta morre, o dióxido de carbono que ela fixava vai para a atmosfera. Quando a árvore é queimada, a emissão é imediata", conta Sawyer.
O dióxido de carbono ou gás carbônico é um dos causadores do "efeito estufa", que está provocando alterações na temperatura e no regime de chuvas. "Não é só São Pedro que está mandando chuva. É o Seu Pedro também", completa o professor da Universidade de Brasília.

Destruição
Na região de São Sebastião - densamente povoada na última década, os danos ambientais são comprovados em um simples passeio de carro. Os condomínios irregulares avançaram até a beira dos côrregos, provocando erosões e prejudicando a qualidade da água. A infra-estrutura é ineficiente, não há rede de captação de águas pluvias, tampouco esgoto ou coleta de lixo adequada. No final, toda sujeira acaba caindo dentro dos cursos d´água.
"Se a legislação ambiental tivesse sido respeitada, a mata ciliar estaria protegendo o côrrego", detalha o engenheiro florestal Helmo Lopes Tavares, perito do Ministério Público do Distrito Federal (MPDFT). Por lei, a ocupação urbana ou agrícola deveria manter pelo menos 30 metros de distância em relação às margens dos côrregos.
A função desta faixa de vegetação seria a de amortecer o impacto ambiental provocado pelo homem. Outro problema relacionado ao desmatamento é a destruição dos corredores ecológicos. Importantes para a sobrevivência das espécies e para a manutenção da biodiversidade, os corredores são caminhos usados pelos animais para passar de uma área natural à outra.
Os bichos transitam pelos corredores para buscar locais com comida mais farta e também para se reproduzirem. "A margens dos cursos d´água são corredores ecológicos naturais. Ao destruí-las, estamos confinando as espécies nas áreas de conservação", detalha Helmo Lopes Tavares.
No mapa da ProBio reproduzido nesta página, o leitor pode imaginar a sensação de pressão que os outros seres vivos que habitam o DF estão vivendo. Basta fazer de conta que ele vive em uma das áreas pintadas de verde, com o agravante de não ter ruas por onde transitar quando quiser dar um passeio.

Bom exemplo
Ela cultiva mudas

Ao entrar na casa de Beatriz Agostini Shakty, 61 anos, o visitante se surpreende com o nível de consciência ambiental. Tudo ali foi pensado para diminuir o impacto dela e dos outros moradores da casa na natureza.
A água é captada da chuva, o aquecimento do chuveiro vem de um painel de energia solar, o banheiro tem descarga seca (sistema que utiliza pó de serragem no lugar de água), o lixo orgânico vira adubo e o jardim é um cerrado vivo e, por isso mesmo, desordenado.
"Tem vizinho que estranha o meu jardim. Pensa que é descuido", brinca ela. Beatriz, mais conhecida como Shatky, é ecológica por gosto e não por profissão.
"Trabalhei a vida inteira em saúde, dentro de hospital. Comecei como faxineira, fui instrumentadora e cheguei a musicoterapeuta", conta a gaúcha, nascida em Erexim (RS).
"Mas, acho que tem a ver sim. Quando a relação entre a pessoa e o meio ambiente é ruim, ela tende a adoecer", completa o raciocínio. Presidente da Patrulha Ecológica - grupo brasiliense de voluntários fundado em 1985, Shakty também se encarrega de produzir mudas de cerrado no quintal de casa.
Trabalho que faz com a ajuda da amiga, vizinha e "patrulheira", Olinda de Melo. As plantinhas crescem sob um grande embiruçu, aguardando a hora de serem repostas à natureza. O cultivo começa com expedições ao cerrado para coletar sementes.
Logo depois, as sementes são plantadas em embalagens velhas de leite. Em seguida, serão mimadas com água e adubo orgânico para germinarem. "Para mim é uma alegria trabalhar com as plantas. Elas sempre te respondem", conta Shakty.
A Patrulha Ecológica adotou quatro nascentes no DF e também faz plantio de árvores em áreas públicas. É para estas áreas que a vida cultivada ali será transplantada. Mas, uma pergunta não pode deixar de ser feita.
A ecologista vive em um condomínio não regularizado, o Condomínio Verde, localizado na área da ESAF.
Ela diz que o endereço foi a resposta encontrada para a falta de políticas habitacionais voltadas à classe média. Conta também que seu esforço em minimizar os danos ambientais é para provar que os condomínios podem ser ecologicamente sustentáveis.
"Quero mostrar que podemos viver em harmonia com a natureza, sem destruí-la."

Estamos enterrando
a barragem

Uma garrafa de 300 ml com aproximadamente três dedos preenchidos por areia. A imagem serve para que se entenda o que está acontecendo com a barragem do Descoberto, principal fonte de abastecimento do Distrito Federal. Desde sua construção, em 1974, o lago do Descoberto já perdeu 17% de seu volume hídrico. Em outras palavras, a capacidade de armazenamento de água diminuiu de 91,9 milhões de metros cúbicos para 76 milhões de metros cúbicos.
A água que deveria estar no espaço perdido (15,9 milhões de metros cúbicos) é mais do que suficiente para abastecer todas as residências do DF durante um mês. A grande quantidade de terra e areia que hoje ocupa o fundo da barragem chegou ali por conta da ocupação urbana desenfreada.
"Apesar de ser uma área protegida, a pressão por moradia sempre foi enorme na região", relata o responsável pela Gerência de Proteção de Recursos Hídricos da Companhia de Saneamento Ambiental do DF (Caesb), Márcio Niemeyer Borges. Do lado do Distrito Federal, estão os condomínios irregulares que apareceram em Ceilândia e em Brazlândia e o parcelamento de chácaras na área conhecida como Incra 8. Do lado goiano, a situação é ainda pior.
A cidade de Águas Lindas, com mais de 130 mil habitantes, de acordo com a última contagem do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), continua a crescer sem infra-estrutura urbana e novos núcleos urbanos aparecem próximos a Padre Bernardo. Ao transformar um ambiente natural em urbano, o homem impermeabiliza o solo com asfalto e cimento.
A água da chuva que infiltraria na terra e abasteceria o lençol freático acaba escorrendo pela superfície. E, junto com ela, carrega areia, terra, vegetação e até lixo. Pelo caminho, a força da água provoca grandes cicatrizes no solo - as erosões, até chegar a um espaço onde fique armazenada. O lago formado pela barragem do Descoberto está numa área de relevo mais baixo, então todo o fluxo de água que vem das áreas urbanas próximas escoa para o reservatório ou seus tributários.
"O ritmo do assoreamento na bacia do Descoberto está muito acentuado e a tendência é que aumente ", alerta Sérgio Koide, professor da Universidade de Brasília (UnB) e especialista em recursos hídricos. Ele avisa que se o poder público não fiscalizar o uso do solo na APA do Descoberto, o DF vai ter problemas de abastecimento no futuro. "Estamos em uma das regiões com menor disponibilidade de recursos hídricos do país. É essencial cuidarmos daqueles que temos ", avisa.
No lado mais próximo de Águas Lindas, os prejuízos ambientais provocados à bacia do Descoberto já são visíveis. Vários processos de erosão estão presentes nas proximidades da BR-070 e nos terrenos que rodeiam a cidade. Para Márcio Niemeyer Borges, da Caesb, a criação de um sistema de captação de águas pluviais no município goiano é o problema mais urgente. "Precisamos de uma solução imediata. Um terço da cidade está dentro da APA, isso não deveria ter acontecido. É preciso encontrar uma solução para diminuir o impacto das águas da chuva", aponta.
Em agosto do ano passado, atendendo a uma recomendação do Ministério Público Federal (MPF), a prefeitura de Águas Lindas se comprometeu a aumentar a vigilância da ocupação do solo e a construir um sistema de contenção para as águas pluviais. Mas, até agora, as obras não começaram. Qualidade E não é só a capacidade de armazenamento do lago que vem diminuindo.
O índice de qualidade da água (IQA) captada na barragem do Descoberto também está piorando. Em 2000, o IQA médio da água era de 81,2 - o que a classificava como muito boa. No ano passado, o IQA médio foi de 72,2, na faixa imediatamente inferior, a de boa (veja quadro). "O declínio é pequeno.
Mas, mostra que já há uma interferência provocada pela ocupação da APA", explica Cláudia Morato Álvares, gerente de Monitoramento da Qualidade da Água da CAESB. Também influenciam no IQA, as técnicas agrícolas utilizadas pelos chacareiros estabelecidos ao redor da barragem. O uso de fertilizantes afeta a qualidade da água.
Por enquanto, o declínio do IQA não traz problemas para a água que é distribuída para 65% do DF. Mas, a médio prazo, pode gerar dificuldades durante o processo de tratamento. Se o IQA piora é necessário trabalhar mais na purificação da água, o que resulta em um aumento na conta que chega ao cidadão. "Já existe tecnologia para tratar água de qualquer qualidade.
Na Europa, eles tratam água que recebe esgotamento sanitário. Temos água de boa qualidade aqui, nossa obrigação é cuidar para mantê-la", explica Cláudia Morato. "Se o IQA continuar caindo, teremos que gastar mais no processo de tratamento. Este custo, inevitavelmente, será repassado ao consumidor final", completa a gerente de Monitoramento da Qualidade de Água da CAESB.
O curioso é que se a água da chuva tivesse sido absorvida pela terra, ela passaria por um processo de filtragem natural e chegaria bastante limpa à barragem do Descoberto. "O processo natural de purificação da água é eficiente. O problema são as modificações que o homem provoca no meio", lamenta o professor Sérgio Koide.
Depois de tratada, a água do Descoberto é distribuída para Ceilândia, Taguatinga, Gama, Guará, Samambaia, Riacho Fundo, Recanto das Emas, Águas Claras, Santa Maria, Núcleo Bandeirante e Candangolândia. O sistema Descoberto também reforça o abastecimento do Plano Piloto, Cruzeiro, Sudoeste e Lago Sul.

Bom exemplo
Ele cuida de nascentes

Ao entrar no Sítio das Neves, na BR-060, Eugênio Giovenardi , 73 anos, avisa que estamos penetrando em propriedade alheia. "Por favor, respeito. Aqui é a terra das árvores, dos bichos e das águas", ensina o escritor e sociólogo. Na propriedade de cem hectares, estão oito das nascentes que alimentam o Ribeirão das Lajes, um dos tributários do rio Santo Antônio do Descoberto. Ao encontrar uma delas - a dos Currais, Eugênio, com vigor físico de menino, ajoelha e prova um pouco da água.
"É uma delícia. Naturalmente pura", comemora. Comprado há 35 anos, o sítio das Neves é motivo de orgulho para Eugênio e a família. Quando ele chegou ali praticamente não havia vegetação nativa. "O dono anterior queimava o cerrado para fazer carvão. Era um homem muito humilde, não sabia o mal que estava fazendo", relata o ex-funcionário da Organização Internacional do Trabalho (OIT). As árvores retorcidas e as flores amarelas, chamadas de douradinhas do campo, que atualmente enfeitam a terra dão testemunho de que Eugênio Geovenardi está vencendo a destruição.
"Eu encontrei tudo devastado, agora vejo vida", conta ele que vai lançar o livro "A saga de um sítio", detalhando a história da recuperação da área. Para que o cerrado voltasse a florescer, Eugênio ocupou-se de assegurar a vida das nascentes. Plantou algumas sementes de espécies endêmicas perto de onde havia água. Também cuidou de criar pequenas barragens, usando pedras, para amortecer o impacto causado pelas águas da chuva. "Assim a água infiltra, eu a devolvo ao lençol freático", ensina ele. O resultado do esforço já se vê, é o início de uma mata de galeria nas áreas onde a água é mais abundante.
A consciência ambiental que Eugênio demonstra foi adquirida em suas andanças pelo mundo. "Como todo brasileiro, eu achava que para desenvolver era preciso desmatar", relata. "Mas, este tipo de desenvolvimento é falso. Destrói mais do que produz". Na Colômbia, onde trabalhou no atendimento a pequenos agricultores, ele percebeu que as áreas com mais água eram as mais prósperas na produção de alimentos. Os moradores delas não passavam fome. Nas ilhas Galápagos, ele entendeu que os seres humanos são apenas um dos inquilinos do planeta terra.
"Lá a vida é tanta que você é que desvia dos pássaros. E não, eles de você", recorda. Sempre que as chuvas chegam, Eugênio encontra lixo no Ribeirão das Lajes. São sacos plásticos, restos de construção e até tampas de privada. Estas desagradáveis vestígios da civilização no santuário do sociólogo se tornaram mais comuns nos últimos cinco anos, quando um loteamento surgiu logo acima do Sítio das Neves. Eugênio lamenta a existência deles, mas não capitula diante de sua proposta de preservar. "Desistir é uma tentação que volta e meia nos ataca. Mas, eu resisto porque sou parte disso.
Um dia voltarei ao solo e quero que ele esteja em boa qualidade para me receber", diz, bem humorado, o escritor e sociólogo.